No mês de abril, assisti a algumas palestras sobre a área de tradução — como faço de tempos em tempos para dar uma “atualizada” nos assuntos. Inspirada, decidi escrever sobre adaptação, que é um tema meio polêmico, tanto para quem trabalha na área quanto para quem consume materiais traduzidos. O texto está meio grande, mas espero que seja útil pra quem vier a lê-lo, além de servir para reflexão.
Antes de começarmos a discutir o conceito de adaptação, vamos pensar nos estrangeirismos, que são palavras de outra língua incorporadas numa outra. Temos como exemplo as palavras performance, layout e delivery. Tenho certeza que você já as viu por aí. Nós já nos acostumamos tanto a usá-las que não nos atentamos aos seus equivalentes (palavras diferentes de mesmo significado em outra língua) na língua portuguesa: desempenho, leiaute (este eu sei que soa estranho, mas é dicionarizado; a grafia é aceita e sugere-se a sua utilização) e entrega. Nesse caso, temos que tomar muita atenção antes de usar uma palavra estrangeira, pois ela já pode existir em nosso vocabulário.
Mas se nos depararmos com um termo de determinada língua de tradução que não possua o mesmo significado do termo da língua de origem, precisamos fazer sua adaptação, ou seja, encontrar um outro termo ou frase que explique, na língua da tradução, o significado do termo na língua de origem. Assim, com a tarefa de traduzir algo que não possui um termo “fixo” e “difundido”, o tradutor precisa contar com a imaginação para adaptar adequadamente aquele termo.
A adaptação aparece em muitas áreas da tradução, como a médica, a literária, a audiovisual, a técnica etc. O importante é termos em mente para quem estamos traduzindo e deixarmos o nosso texto o mais compreensível e fluido possível.
É claro, por mais que o tradutor tente encontrar um termo ou frase que adeque aquele sentido que busca, sempre há quem discorde. Algumas vezes, as pessoas dão “pitacos” porque o tradutor deveria ter usado verbo x em vez do verbo y ou tal adjetivo com tal substantivo. Assim, há duas tarefas: traduzir o termo “inexistente” na língua de chegada e pensar se esse termo se adequa ao tipo de tradução sendo feita.
Hoje em dia, os tipos de comentários mais feitos são de títulos de filmes, séries e livros adaptados. Vejamos alguns deles.
• Títulos de filmes
Para quem tem o costume de usar a internet para assistir a filmes e, assim como eu, compreende um filme falado em língua estrangeira, tem a vantagem de assistir a filmes antes de serem legendados e/ou dublados para irem, por exemplo, para a TV a cabo. Por esse motivo, é mais comum, para mim, lembrar o nome do filme em inglês. Comecemos então pelo polêmico “Ai, mas por que o tradutor adaptou o título do filme assim se o nome do filme é assado?”. Calma lá.
Eu costumo muito ir eventos em que há palestras de pessoas que trabalham em diversas áreas da tradução. Na maioria das vezes, há alguém dando uma apresentação sobre dublagem ou legendagem e sempre surge essa polêmica da adaptação.
Quem não se lembra quando passava Apertem os Cintos! O Piloto Sumiu na televisão? Esse título é uma coisa que eu acho fantástica. Por quê? Porque o nome em inglês é simplesmente Airplane!. Um filme chamado Avião! chamaria a sua atenção, mesmo com o ponto de exclamação? (No mínimo, lembra Carros da Pixar, mas teria que ser “Aviões, da Pixar” — isso, com o título e “a marca” para sabermos que se trata de uma animação).
Primeiro, saibam que a escolha do título de um filme é uma questão mercadológica. Não é o tradutor quem decide e, por mais que ele faça sugestões — às vezes mais condizentes com as que o público espera —, quem decide é a distribuidora. Então não adianta reclamar do pobre do tradutor. Perturbe a distribuidora responsável pelo filme.
Uma tendência que percebo hoje em dia é o uso de subtítulos. Se o nome por si só já é muito chamativo, mas ainda continua “estrangeirizado”, o subtítulo tentar explicar do que se trata. Um exemplo muito conhecido é Frozen que aqui no Brasil ficou como Frozen: Uma Aventura Congelante. Algumas pessoas acham “brega” o uso de subtítulos, mas aposto que se tivessem usado Congeladas (assim como Enrolados para Tangled), teriam reclamado bem mais. Lembrem-se que os “subtítulos explicatórios” ajudam pessoas que não são falantes de inglês, por exemplo, a entender de que se trata o filme. Temos também Creed: Nascido para Lutar, Sicario: Terra de Ninguém e Spotlight: Segredos Revelados.
• Títulos de séries
O primeiro exemplo de título/subtítulo adaptado que me vem à mente quando se fala em série é Breaking Bad: A Química do Mal. Confesso que apesar de não ter acompanhado a série, eu simplesmente amo esse subtítulo. Ficou divertido. Não ficou ruim. Ué, fazer drogas não é algo ilícito? Não teria como ser Breaking Bad: Uma Luz no Fim do Túnel (acho que não é spoiler dizer que Walter White descobre que tem câncer e decide fabricar drogas, certo?) ou Breaking Bad: Câncer e Drogas. Pensar num subtítulo não é moleza, não.
(Atualização em 10/05/2019): O nome da série faz referência à expressão "to break bad", em que a pessoa se "desviou do caminho" e começa a ficar má. Logo o subtítulo "A Química do Mal" faz completo sentido.
Quem se lembra de Smallville: As Aventuras do Superboy? Saudades, infância. Imaginem se essa série estivesse sendo transmitida atualmente: haveria “PEQUENÓPOLIS????!” em letras garrafais pelas redes sociais. Gente do céu. Smallville estava sendo transmitida na TV aberta, pois era uma chance de pessoas que não possuíam TV por assinatura poderem acompanhar as aventuras do Superboy em Pequenópolis, antes de se tornar o Super-Homem/Superman.
Um exemplo que de início me causou estranheza, mas que até hoje eu não consegui pensar num outro título ou subtítulo é The Middle: Uma Família Perdida no Meio do Nada. Nos anos 2000, havia a série Malcolm in the Middle para indicar que ele era o filho do meio, um de três irmãos, apesar de que em português só mantiveram Malcolm (seria bem anos 2000 se fosse Malcolm: O Filho do Meio, não?). Já The Middle indicava que eles eram uma família muito atrapalhada e moravam na cidade fictícia de Orson, em Indiana, que era, literalmente, no meio do nada. Logo, mesmo gigante, o subtítulo Uma Família Perdida no Meio do Nada explica o fato de eles se sentirem perdidos no meio do nada, pois cada membro da família é de um jeito e aquela cidade não parece condizer muito com eles, apesar de sempre terem morado ali.
Imagina se tivessem traduzido Game of Thrones como Jogo dos Tronos? Soaria tão “poderoso” como Guerra dos Tronos, em que deve ter sido levado em conta o contexto de guerras, disputas etc.? Não, né?
Por fim, outros dois títulos polêmicos de seriados são das séries Brooklyn Nine-Nine e The Office, que foram traduzidos, respectivamente, como Lei e Desordem e Vida de Escritório. Por quê? Em relação à primeira, creio eu que para explicar que é uma série de comédia que se passa no 99º Distrito Policial de Brooklyn, Nova York, daria muito trabalho de ser traduzido num título conciso. Podemos até remeter a Law and Order (no Brasil, Lei e Ordem), mas como há a palavra “desordem” no título em contraponto com a palavra “lei”, percebemos que elas não combinam, que uma entra em conflito com a outra. Já o título da segunda não possui esse tom humorístico, apesar de também ser sobre “desordem” em um escritório: Vida de Escritório ou simplesmente O Escritório dá um tom formal ao título da série que também não possui teor humorístico. Logo, precisamos parar de criticar o tradutor por determinadas escolhas na hora de traduzir títulos de séries. Novamente, é uma questão mercadológica. A palavra final (no caso, o título final) é da distribuidora da série. Além disso, sem querer soar grossa ou coisa do tipo, se você não gosta do nome traduzido da série, use o título original. Pronto. Não precisa ficar reclamando. A série continua a mesma, sendo ela um “jogo” ou uma “guerra”.
• Títulos de livros
Decidi acrescentar esse tópico aqui porque houve uma breve discussão sobre os títulos escolhidos pela editora numa mesa redonda que assisti. Novamente, voltamos à questão mercadológica.
A saga Harry Potter não conta com subtítulos, mas sim com grandes títulos com o nome do personagem seguido de “e o(a)” e a colocação escolhida pela autora para resumir a história daquele volume.
Lembro que há alguns anos me deparei com uma discussão de que “ai, a tradução certa do título deveria ser Harry Potter e o Príncipe Mestiço, e não Harry Potter e o Enigma do Príncipe, porque o original é Harry Potter and the Half-Blood Prince”. Na época, eu estava tão acostumada com O Enigma do Príncipe que até demorei um tempo pra entender qual era o “problema”, já que eu tinha apenas 14 anos e pouco entendia de escolhas de tradução ou de qualquer aspecto relacionado a essa área. Claro, O Príncipe Mestiço é um título adjetivado, que se aproxima mais de The Half-Blood Prince, que poderia ser traduzido literalmente como O Príncipe Meio-Sangue, indicando que o tal príncipe fosse fruto da relação de um bruxo com um mortal (na saga, os mortais são chamados de “trouxas”). E se fosse Harry Potter e o Príncipe Trouxa? Não causaria estranheza em quem não soubesse o que “trouxa” significa nesse universo? Não causaria um tom de deboche justamente numa linha do tempo que se aproximava do fim, que ficaria cada vez mais “sombria” e “intrigante”? Eu não ousaria pensar em outra tradução melhor que O Enigma do Príncipe (ou O Príncipe Misterioso, como foi traduzido o título em Portugal), pois “enigma” dá essa ideia de ter algo a ser descoberto, de terem várias pistas a serem desvendadas no final. Logo, acho o título escolhido bem melhor do que “Príncipe Trouxa”.
Um outro exemplo que vale mencionar é o da saga Os Legados de Lorien, que contém o famoso Eu Sou o Número Quatro. Na mesa redonda, a tradutora dessa saga comentou que sugeriu manter todos os títulos no singular, já que cada número se referia a um personagem diferente. Porém, a editora mudou tudo para o plural — creio que a tradutora comentou na mesa redonda que a editora achou que poderiam haver outros personagens chamado “Quatro”, por exemplo, mas tal suposição era errônea. Isso causou raiva nos fãs da saga que estranharam a escolha do plural (The Power of Six virou O Poder dos Seis e The Rise of Nine virou A Ascensão dos Nove). Novamente, não foi culpa da tradutora, mas sim uma alteração feita pela editora. Uma observação: os títulos em Portugal estão no singular, já que cada livro foca em um personagem específico: O Poder de Seis e A Ascensão do Nove.
Obrigada a quem chegou até aqui. Perdão por ter estendido tanto o texto, mas queria dar exemplos bem conhecidos e trazer um ponto de vista dos tradutores com o intuito de fazer as pessoas refletirem antes de demonizarem certas adaptações que não foram feitas pelo tradutor, que queria prezar o conteúdo ou estilo do original, mas que foi impedido porque a distribuidora, a editora, o responsável por aquele material veiculado encontrou um título adaptado mais chamativo e, de certa forma, atrativo para o público. Pretendo escrever um outro texto falando de adaptações pontuais (nomes de personagens, lugares, etc.) e outro sobre dublagem, que também são temas bem polêmicos, mas que precisam ser explorados.
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